Espinhos e assovios

Enquanto eu rodopio na lata apertada do poço dos meus desejos, felizmente, não no fundo do poço, ele assovia sereno uma canção de amor, no jardim, perante meus olhos incrédulos.
Esqueço o medo de meus próprios demônios para espiar o canto assoviado cheio de amor e de calma. Só espiar, afinal ainda tenho pernas curtas demais para chegar ao jardim.
Por alguns instantes esqueço os espinhos, o medo, a fúria, a lata e suas paredes apertadas, esqueço o poço e os desejos, esqueço quem eu sempre fui. Por alguns instantes, meu coração se ocupa em sorrir para ele apenas e aqueles instantes parecem uma vida e uma respiração.
O amor tem dessas. Carrega-nos do caos a paz em alguns instantes.
Eu só queria que essa respiração durasse mais do que instantes.

A paisagem nossa de cada dia

ce.ná.rio2 (direto do dicionário)
sm (lat scenariu) 1 Conjunto de bastidores e vistas apropriados aos fatos que se representam. 2 Seqüência das cenas, no cinema ou teatro. 3 Panorama. 4 Lugar onde se passa algum fato.


A mesma paisagem pode variar em cenário de acordo com os olhos que a observam.
Da mesma forma que uma mesma história pode ser contada de formas diferentes e até sentidos diferentes quando as pessoas que a assistiram (ou estavam envolvidas nela) a descrevem isoladamente.

Não temos como nos certificar de que aquela versão é a verdadeira, se não estivemos presentes, pois, nossos sentidos não passam impunimente pelas nossas vivências anteriores. Sem perceber, sem nos dar conta, vamos sendo lapidados ou deturpados por conceitos infiltrados, enrustidos e oportunistas. 

Dai que imagino ser "o não julgamento" a prática mais saudável e também a mais difícil para se encontrar, ou chegar mais próximo da verdade. 

Duas pessoas podem estar olhando para a mesma paisagem hoje, mas amanhã ao se lembrarem, antes de se darem conta de que aquilo era somente uma paisagem, cada uma contará sobre o ponto de vista do seu próprio cenário naquele momento, o que viu. Para o ouvinte resta uma unica saída, pensar que aquilo que se viu era uma paisagem e dentro dela, a riqueza de todo um universo se desvenda sob o olhar de cada observador de uma forma muito particular, o seu próprio cenário, o seu olhar coberto por suas lentes, seus véus, suas limitações e suas experiências.

Cada ser é um universo e habita no seu próprio cenário. Alguns buscam um tantinho de lucidez para não se perder como Alice no país das maravilhas, mas no final todos nos distraímos com o chapeleiro maluco, cada um de uma forma, cada um no seu grau e sua intensidade.

Ficar atento e ter a consciência de que isso acontece o tempo todo, pode ser uma forma de não cair na toca do coelho, né Alice?

O encontro

Eles chegaram juntos. Ele a amparava suavemente no caminhar. Ela sorria, amparada pelo cuidado daquele toque em seu braço. Ele a ajudou a tirar o casaco, segurou seu cachecol, puxou a cadeira para que ela se sentasse, sorriu  e sentou-se a sua frente.
Via-se nos olhos dela uma diversão quase infantil quando ele falava, escutavam com os olhos um ao outro.
Ela não sabia o que pedir era indecisa e ele passou a falar dos pratos para ajudá-la na escolha. O vinho foi ela quem escolheu, mas foi ele quem provou e aprovou a escolha.
A delicadeza com que ele se dirigia a ela era presente como mais um convidado a mesa. Durante todo o jantar falavam baixinho sobre todos os sabores e especialidades de cada prato, de cada gole de vinho e os sorrisos conversavam com os olhos. Eles falavam dos seus gostos e paladares como se fosse o primeiro encontro.
Desde que eles entraram no restaurante, eu não consegui mais tirar os olhos de cima deles, como se fossem sobrenaturais.
O fato é que me senti nostálgica e feliz sendo espectadora daquele carinho provocador de esperança.
Agora você pode estar pensando que essa cena foi de um primeiro encontro, uma lua de mel ou ainda um jantar de casal apaixonado no começo de sua relação, no ápice da paixão.
Ele pagou a conta, levantou-se e foi em direção a ela,  a ajudou a vestir o casaco, o cachecol, lhe deu um beijo no rosto, sorriram e seguiram de braços amparados.
Fiquei observando aquele casal seguir, idade madura, cabelos brancos, com mais de setenta primaveras certamente. Duas nuvens brancas caminhando lado a lado.

Amor x egoísmo

O amor é generoso em sua essência, simplesmente é, não deixa espaço e nem precisa reflexão para se tornar.
Há pessoas que se dizem amar, mas a fragilidade do seu sentimento esbarra nos sentimentos da vaidade e do ego, e não se percebe generosidade nem que se faça todo o esforço para isso.
Certa vez ouvi que tudo que é de verdade dispensa movimento, a verdade simplesmente é, clara, pura e irremediável.
Pois bem, se o amor é generoso, nos tornamos generosos através do amor. Se  a verdade não requer movimentos tudo que é "empurrado" não é amor, porque o amor e a verdade estão juntos, inseparáveis.
Então quando alguém que a gente se relacionou e não quer mais, insiste em nos dizer que deseja nossa felicidade, mesmo que não seja com ela, mas age (mesmo que inconsciente) para mudar isso... é mentira. É falta de generosidade e requer movimentos constantes, logo também não é amor, é a vaidade de não se deixar ir aquilo que se julga ser dela, aquilo que ELA "necessita" para ser feliz.
Vejo claramente e já vivi pessoalmente essa situação. O som que a boca emitia não condizia com a sombra que emanava dos olhos de alguém que me dizia que desejava minha felicidade. É compreensível que a pessoa esteja coberta por orgulho ferido achando que é amor, é possível que a cobertura seja carência, é possível que o desejo de estar com a outra pessoa seja maior do que a capacidade de, verdadeiramente, desejar que ela seja feliz não estando na sua presença, mas é impossível que seja o amor puro e verdadeiro o motivador deste processo.
Não adianta dizer que espera que o outro seja feliz, mas ficar na espreita, na verdade, esperando a oportunidade surgir para que o outro esteja mais vulnerável e possa te aceitar.
O que é desejar a felicidade de alguém? É se manter presente na oportunidade? É ser um ponto sensível na sua nova trajetória? É desrespeitar a escolha do outro querendo se fazer presente na ânsia de produzir o momento perfeito? É usar a fé, a pena, a solidariedade do outro como subterfúgio para estar perto?
Para mim isso não é amor, é egoísmo.
Deixar o outro ir para ser feliz, com generosidade, gratidão pelo encontro, para que ele possa viver tranquilamente a sua escolha é a manifestação mais pura e verdadeira do amor. Aquele que não precisa de movimento algum, porque já é por si só.

                                                                                                    foto:Bertrand Demee

Mais uma habilidade que me falta

Eu não levo o menor jeito para lidar com pessoas, não sei porque ainda insisto.
Eu não sei ser política, não sei ser hipócrita, não sei ser conveniente, não sei sorrir quando alguém faz uma errada perto de mim, não sei administrar os melindres alheios, não sei lidar com o excesso de sensibilidade, não sei fazer joguinhos. Isso é desagradável para as pessoas, então ser desagradável eu sei. Parece que isso somente denuncia a minha falta de habilidade em lidar com pessoas, normalmente crescidas. Ou seja, me relacionar.
As crianças são mais essenciais, ainda não foram convertidas para o mundano da vida, são simples, puras. Dizem o que querem, o que sentem, e é isso ai, sem joguinhos de adivinhação. Aliás, nem de jogar eu gosto, jogo pra mim só se for na loteria.
Quando eu envelhecer colocarei na porta do meu rancho "Proibida a entrada de pessoas crescidas, passe livre para crianças, animais, plantas e seres maduros" Isso evitará a fadiga.
Estou chegando a conclusão de que o melhor que eu posso fazer, por hora, é isso:
Silêncio por sete dias.

Coisas que eu criei

O buraco que a impotência produz
 dói;
O tamanho da impunidade
 dói;
O erro que não pode ser desfeito
dói;
O cenário lastimável da criação de cada um
dói;
O universo de tudo que grita em mim
 dói;
O grito que cresce calado em minha alma
dói;
A paixão pelas coisas que me atormentam é a mesma que me mantém em pé
E arde aqui dentro.