Não se mate, de Carlos Drummond de Andrade


NÃO SE MATE
(Carlos Drummond de Andrade)



Carlos, sossegue, o amor 
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija, 
depois de amanhã é domingo 
e segunda-feira ninguém sabe 
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para 
as bodas que ninguém sabe 
quando virão, 
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você, 
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, 
vitrolas,
santos que se persignam, 
anúncios do melhor sabão, 
barulho que ninguém sabe
de quê, 
pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito 
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam. 
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos, 
mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.




Um traço muito recorrente no Drummond é o humor, é um poeta com um humor incrível, que tem varias motivações no humor. 
Vejam que graça e que simplicidade isso:

"Carlos, sossegue, o amor 

é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija"


Não há nenhuma tragédia, não há nenhum grande drama instalado no fato do amor num momento se anunciar pleno e no outro ele se furtar, ele se subtrair completamente, um dia beija outro dia não beija. 
Sobretudo reduzir o amor ao próprio ato do beijo é de uma enorme simplificação, então o que  Drummond faz aqui é simplificar o problema amoroso para nos dar uma imagem doméstica, muito do nível do casal, da relação a dois:

"hoje beija, amanhã não beija, 
depois de amanhã é domingo 
e segunda-feira ninguém sabe 
o que será."


Ora, o poema vai neste tom humorístico muito leve e depois tem esse momento dramático:
"
Não se mate, oh não se mate,"


E ai parece que o poema entra em uma especie de momento dramático:

"O amor, Carlos, você telúrico,

a noite passou em você, 
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,"


Esta estrofe é muito estranha, lá dentro onde? Porque até então não tem nenhum espaço físico para que haja um dentro, a não ser que haja uma casa, mas veja, "como a noite passou em você" o que surge pra gente é a imagem do sujeito, "o amor, Carlos". Esta coisa é muito do Drummond, ele se tratar na segunda pessoa, ele fala com ele mesmo. Então a nossa câmera de leitor está toda voltada para o Drummond. A primeira tentação nossa é lá dentro de você, Carlos.


"lá dentro um barulho inefável,

rezas, 
vitrolas,
santos que se persignam, 
anúncios do melhor sabão, 
barulho que ninguém sabe
de quê, 
pra quê."


Parece que tem uma televisão ligada e ao mesmo tempo parece que ele está fotografando ou filmando  o inconsciente deste sujeito, Carlos, então este lá dentro é como se fosse o lá dentro dele. E veja, a gente ainda está naquele mesmo poema, "um dia beija, outro dia não beija", aquela simplicidade desapareceu, aquela intimidade, aquele poema transparente que todo mundo imediatamente lê e  se reconhece, desapareceu. O poema agora é outro, ele já exige do leitor um outro nível de investimento, um outro nível de interpretação, uma outra entrega. Até que:

Entretanto você caminha

melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito 
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam. 


O poema ganha aqui uma espécie de tom maior, muito diferente do que vinha lá na primeira estrofe, então é um poema que vai se transformando ao londo dele, que vai mudando de dicções, num mesmo poema. Por Eucanaã Ferraz.

Transcrição da mesa 17 da FLIP 2012, homenagem a Drummond.

Salman Rushdie em entrevista para O Globo em 2003


Eu sou apaixonada por Drummond e este poema é, para mim, muito especial, me identifico com ele da primeira à última estrofe, palavra por palavra.

Nós somos simples e complexos, silenciosos e barulhentos, lúcidos e ignorantes, sempre vai depender do referencial, do momento interno em que estamos, do grau de emoção envolvido, porque nos perdemos vez ou outra. 
Ninguém é cem porcento isso ou aquilo, somos mutantes, pelo menos, eu acredito, (felizmente) uma grande parte de nós.
Esta complexidade do ser humano é que propicia transformação, evolução, busca por novos conhecimentos e alguma (ou muita) dor e sempre muito aprendizado, se você estiver aberto.

"O amor é isso, hoje beija, amanhã não beija."

É como eu costumo dizer: Eu te amo, mas hoje não estou te amando.
As vezes o barulho é tanto que o silêncio é uma questão de vida ou morte.
As vezes o grito é a sentença de vida.

O que a gente precisa é de compreensão e respeito, qualidades inseparáveis do amor, aquele, o amor de verdade.

Seja lá o que for que esteja acontecendo, não se mate, isso passa, como tudo já passou e passará, não é pessoal contra você quando é no outro, é intrapessoal, é ele com ele mesmo, eu comigo mesma, e vai passar porque tudo passa.

O amor no escuro, não, no claro,

é sempre triste, meu filho, Carlos, 
mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.


O que importa realmente, é que aquele dia que foi o dia mais feliz da sua vida, aquela sensação de coração cheio de amor, vida repleta de sentido, isso pode estar ali, na próxima esquina. Esta é a graça da vida.
Nós somos um universo de coisas, mas o universo também está aos nossos pés.
Coragem, é o que a vida quer da gente.


4 comentários:

  1. Acabei de ler o poema, amei ! a interpretação ficou ótima !

    "O que importa realmente, é que aquele dia que foi o dia mais feliz da sua vida, aquela sensação de coração cheio de amor, vida repleta de sentido, isso pode estar ali, na próxima esquina. Esta é a graça da vida.
    Nós somos um universo de coisas, mas o universo também está aos nossos pés.
    Coragem, é o que a vida quer da gente". sem palavras, realmente precisava ler isso.

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  2. Em que fase Drummond escreveu esse poema?

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    1. esse poema faz parte do livro Brejo das almas, foi lançado em 1934, faz parte de um movimento modernista marcado por autorreflexão e metapoesia

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  3. Em que fase Drummond escreveu esse poema?

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