Sobre um pai e sua filha


Um pai amoroso faz qualquer coisa por sua filha. Não um pai qualquer, me refiro aqui a um pai amoroso, porque, infelizmente, nem todas as filhas tem a sorte de ter por perto um pai assim. Infelizmente, porque na minha opinião, ter um pai amoroso faz uma grande diferença na vida de uma menina.

Eu conheci alguns pais amorosos.


Eu conheci um pai que deixou de fazer a coisa que mais amava na vida, sua vocação, porque achou que a sua filha "merecia" um pai com uma vida mais "estável."

Eu conheci um pai que aguentou as piores humilhações e agressões porque acreditou que isso seria o mais certo a fazer para se manter por perto de sua filha.
Eu conheci um pai que fez sacrifícios pessoais, financeiros e físicos em nome do amor e daquilo que acreditava ser o melhor para a sua filha.
Pais amorosos não estão imunes aos seus próprios códigos, suas próprias crenças, seus próprios traumas e muito menos aos seus próprios significados distorcidos sobre o que é ser um bom pai, sobre o que é a felicidade.
Eles amam, mas isso não significa que mesmo motivados pelo mais alto amor, não errem nos seus julgamentos, nas suas decisões e na forma como imaginam estar bem educando as suas filhas.
O meu pai, que é do pai que eu posso falar com propriedade, agora crescidinha que sou, me deu o maior amor que ele foi capaz, ele me protegeu o quanto pôde e do seu jeito, ele me mostrou o que era se sentir amada. Tudo isso dentro da sua realidade, da sua visão, de sua história e referências de vida.
Meu pai tem uma visão machista. Ele acredita realmente que a mulher precisa de um homem ao seu lado para ser completa, ele acredita que uma mulher não pode se defender sozinha, que precisa ser protegida, que sem isso ela jamais será feliz.
Então tudo que ele fez foi na intenção de me proteger dos "caras maus" e, no seu entendimento, a melhor forma de fazer isso era me "entregar a um bom cara".
O que ficou enrustido em mim eu vou contar até o fim deste texto.
O que eu gostaria que ele tivesse me ensinado é o que me motivou a escrever hoje, mas quero já deixar bem claro que não o culpo por meus enganos e desenganos.


Hoje eu tenho 41 anos e posso, como um engenheiro de obra pronta, apontar aqui o que poderia ter sido bom ter aprendido com o meu pai.

Eu gostaria que ele tivesse me ensinado a fazer as coisas que ele desejou que um "bom cara" fizesse por mim, porque isso eu tive que ir aprendendo do meu jeito, errando e aprendendo com os erros. Eu estive bem acompanhada em alguns anos da minha vida, mas isso não é garantia de nada.
Eu me casei com 19 anos e para seu desespero, me separei com 24. Deixei de ter o "guardião" das minhas necessidades por perto e isso o deixou preocupado. E ele está preocupado com isso até hoje.
Isso me lembra da Cher falando de sua mãe dizendo que ela precisava sossegar e arrumar um homem rico e ela respondeu - Eu sou o homem rico.
Eu gostaria que ele tivesse me ensinado a lidar com o meu carro, isso teria me economizado uma grana e uma grande raiva. Ao levar meu carro para trocar os pneus pela primeira vez, os caras da mecânica me apavoram dizendo que meu carro não tinha condições de ir até a esquina e me apresentaram um orçamento com peças que nem existiam naquele modelo de carro. E eu paguei. Ao descobrir o engodo, me senti humilhada e feita de idiota.
Depois disso eu aprendi a ler os manuais de todos os carros que já tive, a buscar tutoriais sobre manutenção, a assistir programas que falavam de carros, a ler revistas com matérias sobre manutenção e prevenção, e a prestar atenção a todas as conversas que pude sobre o tema. Quando eu levo meu carro para a oficina os mecânicos tem que me explicar item por item, o que, como e porque funcionam e quebram, além de mostrar a peça com a diferença do desgaste e como isso afeta o carro.
Eu queria que ele tivesse me ensinado a trocar o chuveiro, o interruptor, a usar a furadeira. Ele arrumava as coisas da nossa casa todo domingo de manhã, enquanto nós dormíamos na infância. 

Ele sempre foi muito curioso e fazia todo tipo de "gambiarra" antes de chamar os técnicos. As vezes funcionava, as vezes não. Eu queria que ele tivesse me ensinado essas coisas todas de manutenção e conserto das coisas que eu sei que ele sabe fazer. Ele achou que a sua princesinha teria um homem para resolver as coisas desse tipo para ela e isso me fez (por um tempo) ficar dependente e ignorante nestes assuntos.

Por sorte também sou curiosa e acabo aprendendo na raça e na necessidade mesmo.
A válvula hidra eu já desisti, desmontei várias vezes e nunca consegui montar novamente, sempre uma maldita peça fica de fora, é um quebra-cabeça sem solução para mim. Cubo mágico é fichinha!
Conhecimento é empoderamento, isso ele me ensinou para os estudos e para o trabalho, mas não para a parte prática da vida. 
Eu gostaria que meu pai tivesse me ensinado o que ele sabe para se virar na vida, sem me colocar neste lugar de "isso não é coisa de mulher". Na tentativa de me proteger, ele me enfraqueceu (por um tempo).

Eu adoraria que ele tivesse me contado sobre a sua juventude militante, sua postura revolucionária tentando mudar o mundo através do engajamento em causas sociais.

Eu gostaria que ele tivesse me ensinado a nadar, a dirigir, a reagir. Nunca passou pela cabeça dele que com 41 anos eu estaria no meio de uma montanha afastada, no dia de Natal, consertando a bomba de água do sítio para que pudesse ter água na casa. Isso eu fiz e foi agora no Natal passado.
Ele não imaginou que eu estaria dirigindo meu carro em estradas de terra e lama, como se tivesse um jipe 4x4. Que eu quase rodaria o carro umas 20 vezes até finalmente rodar e quase capotar para aprender a dirigir em terrenos difíceis, mas isso ele faz e poderia ter me ensinado.
Ele não imaginou nem um décimo das coisas que eu faço hoje, porque na sua realidade eu estaria protegida por um "bom homem" que faria tudo para mim.
Se eu pudesse voltar no tempo e dar um conselho para ele, seria - Ensine tudo que você sabe fazer para ela, desde o motor do carro até a máquina de lavar e deixe que ela tenha a escolha de fazer por ela mesma ou pedir ajuda. Teria dito para ele que me ajudasse a ser independente emocionalmente, que nenhum homem preencheria o vazio que mora dentro de mim, que isso seria uma tarefa minha por toda minha vida.
Durante muito tempo eu me anulei para agradar algum "bom cara" porque de algum jeito as idéias dele estavam impregnadas em mim, por exemplo,a ideia de que eu precisava de um homem para cuidar de mim. Essas ideias acabaram me sufocando tanto que em algum momento eu não sabia quem realmente eu era.
Um pai nunca vai saber como e onde estará a vida de sua filha aos 30, 40, 50 anos, então o melhor a fazer é prepará-la para se cuidar em qualquer situação.
Meu pai é machista, talvez nada mude isso nele, e ele na verdade, nem se considera um, mas é. 


Quando eu me separei, ele ficou tão preocupado com a sua filhinha sozinha em São Paulo que não percebeu o quanto machucada e precisando de apoio na minha decisão eu estava. Ele tentou me demover, e tudo que eu precisava era de um abraço, um colo, ouvir "vai ficar tudo bem"- "estamos do seu lado no que você decidir" - "você vai conseguir recuperar seu coração e seguir em frente".

Ele realmente não soube lidar com a ideia de me ver sozinha em São Paulo, isso o apavorou. Sem saber, sem perceber, ele só deixou aquele momento mais difícil do que já era para mim.
Meu conselho para um pai de menina é - empodere sua filha. Ensine para ela que ela pode fazer qualquer coisa que queira, que o fato de ser mulher não a limita. Ensine como ela pode se proteger e se defender neste mundo machista, sem a fragilizar.

Quando eu tinha 13 anos, eu fui agarrada e beijada a força. O meu pai nunca soube, eu tive vergonha de falar, vergonha que ele achasse que eu havia provocado aquilo, tive medo. E talvez este medo tenha nascido no medo dele em que eu engravidasse sem estar casada, ou seja medo que eu transasse. Neste mundo machista o que uma filha precisa é que seu pai a ajude a ser autêntica e não ter medo da verdade. Que a ajude a ver que ela pode ser e vestir o que quiser que isso não dá o direito a ninguém de a rotular, julgar ou desrespeitar. Que a ajude a entender como pode se defender dos homens que justificam a sua falta de controle dentro da cueca com a altura da saia ou o decote que a mulher usa.

Que a ajude a se amar, a se aceitar, a ensine a não aceitar que o mundo dite as regras de seu corpo, de sua natureza, de sua beleza, um pai tem este poder.
Eu gostaria que meu pai tivesse me dito que meu coração poderia ser quebrado, mas que isso também fazia parte das minhas escolhas, que a minha felicidade é responsabilidade minha e que delegar esta tarefa para alguém é pesado demais e não vai funcionar.
Eu queria que ele me dissesse que há pessoas que mentem e enganam e que só se desilude quem um dia se iludiu, mas que existem pessoas verdadeiras também, que eu teria que aprender a distinguir uma das outras e que isso vem com a maturidade.
Eu queria que ele tivesse me ajudado na descoberta de mim mesma, da minha real essência, sem rótulos, sem me encaixotar ou idealizar e sem dar a permissão para ninguém me ferir com seus próprios julgamentos e preconceitos.
Eu sei que pode ser pedir demais de um pai... 
E ele fez o melhor que pôde naquela época. Não tenho dúvida alguma disso, este texto não é uma reclamação. É uma sugestão para os pais de meninas, para que fiquem atentos a si mesmos.
Nós sabemos o que vocês pensam sem nunca termos ouvido de vocês. Nós sabemos o que esperam de nós, conhecemos seus olhares.
Mulheres são intuitivas desde sempre. Nós sabemos e, na ânsia de não decepcioná-los, nós, muitas vezes, nos perdemos. 
E, demorou um tempo e algumas terapias para perceber que o desejo de agradar e de ser amada e aceita pelo Papai foi se reproduzindo nas relações. Que ao considerarmos o medo da rejeição, deixamos nossa autenticidade de lado, agimos e reagimos fora do coração e na carência.
Então, meu último conselho é que observe, converse e esteja disponível e pronto para o que vier dela. Dê espaço para que ela se exponha, tente com todas as suas forças, não julgá-la, porque o mundo já faz isso demais e isso fere. 
Conheça mais a sua menina. E reflita sobre si mesmo. Ampliando sua forma de se ver e ver o mundo, consequentemente a forma de ver a sua garota será mais ampla. Saia da caixa e abra seu coração para ela.
No final tudo vai dar certo. 
Comigo vem dando melhor depois que eu me dei conta do quanto do meu pai eu carregava em mim sem saber.
Eu amo aquele bronco machista com todas as minhas forças, mas hoje ele não me transfere as suas questões e com isso não interfere indiretamente nas minhas.
A consciência ampla, a empatia, a compaixão faz do ser humano algo melhor, um ser humano melhor e um homem melhor resulta em um pai melhor.
E se, você lendo isso tudo pensou que é um exagero isso de ser mulher no mundo machista e exigente em que vivemos, sugiro que veja este vídeo. e abra sua mente e seus olhos e ouvidos para o que acontece além do seu umbigo.

"Uma mulher que acha que nunca foi discriminada por ser mulher é só uma mulher  extremamente distraída"



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fique a vontade e entre na conversa!