Comer, Rezar, Amar - Trecho do livro


Elizabeth Gilbert

Durante quase duas décadas inteiras, estive envolvida em algum tipo de drama com algum tipo de cara. Cada qual se sobrepondo ao seguinte, sem sequer uma semana de intervalo entre os dois. E não posso evitar pensar que isso representou uma espécie de entrave no meu caminho rumo à maturidade.
Além disso, tenho problemas de limites com os homens. Ou talvez não seja justo dizer isso. Para ter problemas com limites, é preciso primeiro TER limites, certo? Mas eu sou inteiramente tragada pela pessoa que amo. Sou como uma membrana permeável. Se eu amo você, eu lhe dou tudo que tenho. Dou-lhe o meu tempo, a minha dedicação, a minha bunda, o meu dinheiro, a minha família, o meu cachorro, o dinheiro do meu cachorro, o tempo do meu cachorro - tudo. Se eu amo você, carregarei para você toda a sua dor, assumirei por você todas as suas dívidas  (em todos os sentidos da palavra), protegerei você da sua própria insegurança, projetarei em você todo o tipo de qualidade que você na verdade nunca cultivou em si mesmo e comprarei presentes de Natal para sua família inteira. Eu lhe darei o sol e a chuva. Darei a você tudo isso e mais, até ficar tão exausta e debilitada que a única maneira que terei de recuperar minha energia será me apaixonar por outra pessoa.
Não é com orgulho que revelo esses fatos sobre mim mesma, mas é assim que sempre foi.

"O que sei é o seguinte: estou exausta com as consequências cumulativas de uma vida de escolhas apressadas e paixões caóticas."

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Mas e se, seja por escolha ou por uma relutante necessidade, você acabar não participando desse reconfortante ciclo de família e continuidade? E se você sair dele? Onde vai se sentar na reunião familiar? Como vai marcar a passagem do tempo sem o medo de ter simplesmente desperdiçado seu tempo na Terra sem ser relevante? Você vai precisar encontrar outro propósito, outra medida pela qual avaliar se foi ou não um ser humano bem sucedido. Adoro crianças, mas e se eu não tiver filhos? Que tipo de pessoa isso me torna?
Virginia Woof escreveu: " Sobre o imenso continente da vida de uma mulher recai a sombra de uma espada." De um lado dessa espada, disse ela, estão a convenção, a tradição e a ordem, onde "tudo é correto". Mas, do outro lado dessa espada, se você for louca o suficiente para atravessar a sombra e escolher uma vida que não segue a convenção, "tudo é confusão. Nada segue um curso regular". Seu argumento era que atravessar a sombra dessa espada pode proporcionar à mulher uma existência muito mais interessante, mas podem apostar que ela também será mais perigosa.
Tenho a sorte de pelo menos ter a minha escrita.

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Nós nos amávamos. O problema nunca foi esse. Só não conseguíamos descobrir como parar de tornar o outro desesperadamente, alucinadamente, desgraçadamente infeliz.
Na primavera anterior, David havia proposto a seguinte louca solução para os nossos problemas, só meio brincando:
_E se a gente simplesmente reconhecesse que nosso relacionamento é ruim, e mesmo assim ficasse junto? Se admitisse que a gente enlouquece um ao outro, que está sempre brigando e quase nunca transa, mas não consegue viver um sem o outro, por isso aguenta tudo? Daí a gente poderia passar a vida inteira junto ... infelizes, mas felizes por não estarmos separados.
Que o fato de eu ter passado os últimos dez meses considerando seriamente essa proposta seja um testemunho de como eu amo desesperadamente esse cara.
A outra alternativa que ainda não havíamos descartado, é claro, é que um de nós pudesse mudar. Ele poderia se tornar mais aberto e mais afetuoso, sem se afastar de qualquer pessoa que o amasse por medo de que ela fosse lhe devorar a alma. Ou eu poderia aprender a ... parar de devorar a alma dele.
Com David, eu muitas vezes havia desejado conseguir me comportar mais como minha mãe faz em seu casamento - independente, forte, auto-suficiente. Alguém que se vira sozinho. Alguém capaz de existir  sem doses regulares de romantismo ou elogios do solitário fazendeiro que é meu pai. Alguém capaz de plantar alegremente jardins de margaridas entre os inexplicáveis muros de pedra do silêncio que meu pai às vezes constrói ao redor de si mesmo. Meu pai é simplesmente a pessoa  que quem mais gosto no mundo, mas ele é meio esquisito. Um ex-namorado meu certa vez o descreveu assim:
_ O seu pai só tem um pé na Terra. E pernas muito, muito compridas.
O que cresci vendo acontecer na minha casa foi uma mãe que recebia o amor e o afeto do marido sempre que se lembrava de lhe dar, mas que em seguida se afastava e ia cuidar da própria vida, enquanto ele mergulhava em seu universo particular, feito do pior tipo de negligência distraída.
...
Mas então tive uma conversa reveladora com minha mãe, pouco antes de viajar para Roma ... Contei-lhe o quanto amava David, mas como me sentia sozinha e desiludida estando com alguém que não parava de sumir da sala, da cama, do planeta.
_Está parecendo que ele é meio igual ao seu pai - disse ela. Um reconhecimento corajoso e generoso.
O problema  - disse eu - é que não sou igual a minha mãe. Não sou tão forte quanto você, mãe. Eu realmente preciso de um nível constante de proximidade da pessoa que amo. Queria conseguir ser mais parecida com você, então eu poderia viver esta história de amor com o David. Mas não poder contar com esse afeto quando preciso dele simplesmente me destrói.
Foi ai que minha mãe me chocou. Ela disse:
_ Sabe todos essas coisas que quer do seu relacionamento, Liz? Eu também sempre quis essas coisas.
Nesse instante, foi como se a minha mãe tão forte estendesse a mão por cima da mesa, abrisse o punho fechado e finalmente me mostrasse a quantidade de sapos que tivera de engolir ao longo de décadas para conseguir permanecer feliz no casamento com meu pai (e, considerando todos os prós e os contras, ela é feliz no casamento). Nunca tinha visto esse seu lado antes, nunca. Nunca havia imaginado o que ela poderia ter querido, o que poderia lhe ter faltado, por que coisas ela poderia ter decidido não lutar depois de considear a situação de forma geral. Ao ver tudo isso, pude sentir minha própria visão de mundo começar a sofrer uma mudança radical.
Se até ela quer o que eu quero, então...?
Dando prosseguimento a essa sucessão inédita de intimidades, minha mãe falou:
_ Você precisa entender que fui criada esperando merecer muito pouca coisa da vida, meu anjo. Lembre-se... sou de um tempo e de um lugar diferentes dos seus.
Fechei os olhos e vi minha mãe aos 10 anos de idade, na fazenda da família, trabalhando como uma condenada, criando os irmãos mais novos, usando as roupas da irmã mais velha, poupando centavos para conseguir sair de lá...
_ E você precisa entender o quanto amo o seu pai - concluiu ela.
Minha mãe fez escolhas na vida, como todos nós precisamos fazer, e está em paz com elas. Posso ver a sua paz. Ela não julgou a si mesma. Os benefícios das suas escolhas são enormes - um casamento duradouro e estável com um homem a quem ela ainda chama de melhor amigo; uma família que agora inclui netos que a adoram: a certeza de sua própria força. Talvez algumas coisas tenham sido sacrificadas, e meu pai também fez lá os seus sacrifícios - mas qual de nós vive sem sacrifício?
E, a gora, a pergunta para mim é: Quais serão as minhas escolhas? O que eu acho que mereço nesta vida? Onde posso aceitar fazer sacrifícios, e onde isso não será possível? Tem sido muito difícil para mim imaginar a vida sem David. Tem sido difícil até imaginar que nunca haverá nenhuma outra viagem de carro com meu companheiro de viagem preferido, que nunca mais vou encostar no meio fio em frente à casa dele com as janelas abertas e Bruce Springsteen tocando no rádio, um estoque imenso de papo-furado e besteiras para comer em cima do banco, e infinitos destinos despontando na auto-estrada. Mas como posso aceitar esta felicidade, quando ela vem acompanhada de um lado tão sombrio - um isolamento acachapante, uma insegurança corrosiva, um ressentimento insidioso e, é claro, a completa desintegração do meu ser que inevitavelmente acontece quando David pára de dar e começa a levar embora. Não consigo mais fazer isso. Alguma coisa em minha recente felicidade napolitana me fez ter certeza de que não apenas eu posso encontrar a felicidade sem David, mas que eu preciso fazer isso. Por mais que eu o ame ( e eu o amo de verdade, de forma estupidamente excessiva), preciso dizer adeus e essa pessoa agora. E preciso me manter fiel a essa decisão.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Sabe querida, este livro comecei a ler e nao terminei por falta de tempo mesmo, mas estava buscando esse trecho inicial que é a minha cara:
    Durante quase duas décadas inteiras, estive envolvida em algum tipo de drama com algum tipo de cara. Cada qual se sobrepondo ao seguinte, sem sequer uma semana de intervalo entre os dois. ............................
    Além disso, tenho problemas de limites com os homens....

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  3. Adorei essa parte do livro.

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